A Unidos do Viradouro apresentou na noite desta quinta-feira, 30, aos compositores, na quadra da escola, em Niterói, a sinopse de “Rosa Maria Egipcíaca”, enredo que a escola levará à Marquês de Sapucaí no desfile de 2023.
Venha conferir a sinopse da Unidos do Viradouro para o carnaval 2023.
ROSA
MARIA EGIPCÍACA
A
Profecia das Águas
Presságio… Diante
do espelho ondulante das águas, a menina courana[1] sentiu
a vida passar diante de si. Uma gota se transformou em oceano, fazendo o real
transbordar em vertigem.
Em transe, percebeu-se
tragada por um assombroso redemoinho em meio a um dilúvio brutal. Então defrontou-se
com o reflexo de uma mulher misteriosa, de manto reluzente e coroa luminosa,
como que a protegendo da própria sina. E, de súbito, viu-se emergir em uma arca
resplandecente sobre a qual flutuaria plácida a cortar a fúria das ondas.
A menina chorou
frente àquela revelação. Dali em diante, tudo se desfez em mar revolto, apagando
as memórias dos seus primeiros anos. Foi rebatizada em águas cariocas, no outro
lado do Atlântico. E desse bárbaro ritual de esquecimento, brotou uma nova
Rosa, preta e cálida: a Rosa mística do Brasil.
Auri Sacra
Fames
– A Fome de Ouro
Ainda jovem,
seguiu em romaria vigiada, por léguas e léguas mata adentro. Vendida às Minas
Gerais, foi obrigada a peregrinar com os cativos pela Serra da Mantiqueira, longo
percurso que a assombrava com visões de paraísos e infernos. Entre bruma e
poeira, cortava as alterosas cravejadas de sonho e temor.
Nas freguesias
mineiras, a sociedade devota do ouro e dos diamantes era sustentada pela
depravada escravização na colônia. Cortejos de penitentes saíam pelas vielas do
arraial entoando ladainhas. Pediam perdão por muitos pecados, menos o de
submeter outros seres humanos a condições degradantes em nome da adoração às
pedras e aos metais preciosos. Pacto social que envolvia todo um sistema
forjado no privilégio, na degeneração moral e violação da dignidade dos corpos
pretos.
Mas havia as frestas
sociais. Enquanto servia de oferenda àquela civilização de escândalos e perversões,
Rosa acumulou um tanto de joias para se enfeitar e sedas para se cobrir. Os parcos
ganhos eram ostentados nos batuques do Acotundá[2]. Na
magia da noite escura, encandeada de luar e fogueira, a preta girava saia, saudava
as almas e soprava aos ares a fumaça do cachimbo, religando-se à ancestralidade
que brotava no terreirão da Fazenda Cata Preta[3],
onde era cativa.
Até que o corpo
deu sinais de desgaste. E Rosa se desfez de tudo. Distribuiu aos seus o pouco
que havia recolhido, como fez Maria do Egito, a santa meretriz que foi alçada
ao altar celestial após doar aos desvalidos toda a riqueza de uma vida. Mais
tarde, deixaria de ser a Courana para ser Rosa Egipcíaca, transitando entre a
devoção e o misticismo.
Ventanias,
Visões e Possessões
Feitiçaria ou
teatro? A freguesia alvoroçada se dividia em opiniões ao testemunhar as
possessões da mulher, ocorridas entre rezas e sessões de exorcismo comandadas
pelo padre português Francisco Gonçalves Lopes, o “Xota-Diabos”[4].
Visagens
chegavam a Rosa em ventanias ruidosas que apoquentavam sua mente dividida entre
os solfejos dos anjos e os gritos dos malignos. Em êxtase espiritual, ela era
saliva e fogo, arrepio e suor, lágrima e vulcão. Sentia, atordoada, a presença
de sete demônios pairando sobre si em vertiginosas espirais, possuída tal qual Maria
Madalena[5].
Mas, assim como
a personagem bíblica, a africana tinha também a alma acalentada pelo amor
Divino. E os ventos agora lhe sopravam de volta ao litoral.
A
Flor do Rio
Vivendo a
debulhar as contas do Rosário, retornou ao Rio de Janeiro por onde desfilava como
dileta serva de Deus. Sob o pálio da devoção a Santana[6], avó
de Cristo, a negra cruzava a fé dos brancos com os cultos ancestrais aos mais
velhos, herança da sua origem na costa africana. Rosa impressionava o universo religioso
da cidade com seus dons premonitórios, jejuns e flagelações, tornando-se foco
de curiosidade e admiração. Um passo para ser cultuada como Santa.
Levada pelo
dever de perpetuar os pensamentos devocionais, alfabetizou-se nas letras
divinas e passou a escrever compulsivamente. Foi assim que colocou no papel
aquele que é considerado o primeiro livro a ser escrito por uma mulher negra no
Brasil[7]. Desta
forma, derramava pelas suas mãos o bendizer da palavra revelada nos pergaminhos
mais sublimes.
Sentia na pele
e no coração as dores das mulheres afastadas do convívio familiar. Assim, a
visionária ergueu o Recolhimento, mosteiro com que ela havia sonhado como arca
protetora a abrigar almas cujos corpos femininos eram negados pela sociedade.
O poder da
vidência não cessava e Rosa sonhou com a imagem de cinco corações[8]
radiosos e brilhantes. Cada vez mais santa no altar popular, foi se tornando
mais mística, mais etérea e mais misteriosa. Elo entre Deus e a humanidade, a
beata com dons paranormais seria desposada em um grandioso devaneio
apocalíptico.
A
Derradeira Profecia
Revelação. Rosa
fechou os olhos e pressentiu um dilúvio de força descomunal que lavaria os
pecados da humanidade. Estava novamente frente à imagem que tanto a impressionou
na infância: a mesma mulher misteriosa de manto reluzente, protetora do seu destino.
Debaixo do majestoso véu das virtudes, revelou-se a face verdadeira: era o
próprio rosto de Rosa.
Águas em
turbilhão sairiam como veios da terra. E daquele reino sobrenatural emergiria não
uma, mas duas arcas, flutuando entre a história e o delírio. Em uma, estava ela,
no esplendor do seu último desvario; na outra, o rei Dom Sebastião[9],
desaparecido em épica batalha em nome de Cristo.
O enlace com o
Rei dos Encantados consumaria a união mística para fundar o grande Império Brasileiro.
Rosa, enfim, seria o rastro de salvação dos eleitos no triunfante evento do fim
dos tempos, inundando as almas de esperança. Assim, cumpriu o enredo de uma
vida e agora estava liberta para se tornar a própria Santa na qual se refletia[10].
Uma
Santa Negra no Céu
E lá no
firmamento, aonde as águas do dilúvio a arrebataram, um concerto de marimbas e
candombes[11]
a aclamou em sua saga de fé. Guardas da Santa Coroa, empunhando fitas e
bandeiras, uniram-se em batuques para louvar à Santíssima africana que um dia
viveu cercada de mistérios e virtudes em uma terra tão plena de vícios quanto de
credos.
Folguedos
desfilaram em louvor à mulher que virou divindade, em sagrado cortejo de
canonização popular. Nos jardins do Palácio Celeste, ela se enxergou em cada rosa
que desafia a sorte, insiste em rachar o chão e brota da aridez.
E no altar do
Divino, todo enfeitado de flor, a mais bela Rosa orna a coroa do Senhor.
Não é uma rosa
qualquer. É a Rosa que o povo aclamou!
Autor do Enredo e
Carnavalesco: Tarcísio Zanon
Inspirado no livro “Rosa
Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil”, de Luiz Mott
Texto: João Gustavo Melo
Referências:
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar.
O Reino Encantado: crônica sebastianista. Editor do Organizador, 2017.
ANTAN,
Leonardo. Laroyê, Xica da Silva:
narrativas encruzilhadas de uma incorporação no carnaval carioca. Nova Iguaçu:
Carnavalize, 2021.
MARANHÃO,
Heloísa. Rosa Maria Egipcíaca da Vera
Cruz. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no
Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
MOTT, Luiz. Acotundá: raízes setecentistas do
sincretismo religioso afro-brasileiro, In Escravidão, Homossexualidade e
Demonologia. S. Paulo: ícone, 1988, pp. 87-118.
PERES, Eraldo. FÉsta Brasileira: folias, romarias e
congadas. São Paulo: Editora Senac, 2010.
SIMAS, Luiz
Antônio. Almanaque de Brasilidades:
um inventário do Brasil popular. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018.
SOUSA,
Giulliano Glória de. Negros feiticeiros
das Geraes: práticas mágicas africanas e repressão em Minas Gerais na
segunda metade do século XVIII. Anais da Anpuh. Mariana (MG), 2012.
[1]
Courana
se refere à origem da protagonista do enredo, oriunda da nação courá, (também
chamada courana, courama ou curana). O povoado dessa etnia localizava-se na
costa do reino de Benin.
[2]
Segundo
Luiz Mott, “Tundá” ou dança de “Tundá”, de onde deriva “Acotundá”, eram termos
recorrentes em cerimônias de matriz africana no Brasil colonial, sendo
registrado em Minas Gerais, no povoado de Paracatu.
[3]
Rosa
viveu entre 1733 e 1745 na Fazenda Cata Preta, no arraial do Inficcionado, vilarejo
construído entre as montanhas de Minas Gerais.
[4] “Xota-Diabos”
é corruptela de “Enxota-Diabos”, em alusão aos dons ligados ao exorcismo. O
Padre seguiu ao lado de Rosa como espécie de protetor espiritual
.
[5] Segundo
a Bíblia (Lucas, Cap. 8, Vers. 2): “… e também algumas mulheres que haviam
sido curadas de espíritos malignos e doenças: Maria, chamada Madalena, de onde
haviam saído sete demônios”.
[6]
Rosa
tornou-se fervorosa devota da Santana, mãe de Maria e avó de Cristo. Ganhou,
entre 24 títulos laudatórios, o de “Filha de Santana”. O culto à mãe de Nossa
Senhora ganhou grande impulso no Rio de Janeiro nos anos de 1700.
[7] O livro
escrito por Rosa Maria Egipcíaca se chamava “Sagrada Teologia do Amor Divino
das Almas Peregrinas”. Poucas páginas restaram da obra.
[8] Os
Cinco Corações da Sagrada Família apareceram em forma de visão Rosa,
representando os corações de Cristo, da Virgem Maria, de São José, de Santana e
de São Joaquim. A imagem foi reproduzida, esculturada e adornada, e até hoje
está presente em uma capela no convento de Santo Antônio, no Largo da Carioca,
centro do Rio de Janeiro.
[9]
Monarca
português desaparecido na histórica batalha de Alcácer Quibir, no Marrocos, em
1578. Desse episódio, surgiram várias versões místicas sobre o paradeiro do
soberano, que passou a ser cultuado no Brasil em diversas religiões, inclusive
as de matriz africana.
[10] Acusada
de heresia, Rosa foi presa e levada a Lisboa pela Inquisição. Após ter toda a
sua impressionante história registrada em depoimentos colhidos na capital
portuguesa, acabou morrendo de causas naturais. A trajetória da africana foi
revelada séculos mais tarde pela minuciosa pesquisa do antropólogo Luiz Mott.
Aqui, tomamos uma das visões de Rosa para projetarmos outro desfecho para a
Santa, eternizada no imaginário popular.
[11]
O candombe (tambor) traz os
espíritos à Terra, reunindo, ao seu toque, vivos e mortos. Marimba é um
instrumento de origem africana, formado por placas de metal ou madeira, que
vibram ao toque de baquetas.
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