A Mocidade Independente de
Padre Miguel lançou na noite do último sábado (08) a sinopse do seu enredo para
o carnaval 2020. A Mocidade levará para Sapucaí o enredo: “Elza Deusa Soares”.
A cantora Elza Soares esteve presente no lançamento realizado na quadra da
agremiação.
Padre Miguel lançou na noite do último sábado (08) a sinopse do seu enredo para
o carnaval 2020. A Mocidade levará para Sapucaí o enredo: “Elza Deusa Soares”.
A cantora Elza Soares esteve presente no lançamento realizado na quadra da
agremiação.
![]() |
“Elza Deusa Soares”. |
![]() |
Elza Soares e o carnavalesco Jack Vasconcelos (Foto:Eduardo Hollanda) |
Venha conferir a sinopse da
Mocidade Independente de Padre Miguel 2020.
Elza Deusa Soares
A menina magricela nascida no
distante bairro de Padre Miguel, menos de 40 quilos de pura insistência em
sobreviver, desembarca no badalado programa de calouros de Ary Barroso.
Equilibrava bom punhado de alfinetes para conter os panos todos do conjunto que
sobrava e sambava no corpo. O sonho de ser a moça bonita do rádio determinava
as cantorias da pequena – lata d’água na cabeça – cuja infância havia sido
subtraída pelo suor de sol a sol dos afazeres domésticos. Já em posição
debutante no palco transmitido em ondas aos ouvintes, as lembranças de pueris
duetos com o som do louva-a-deus e as espiadelas no pai violeiro garantiam
relativa técnica. Mas a força para transcender o destino foi a autêntica locomotiva.
O autor de “Aquarela do Brasil” fez as honras sem nenhum pingo de honra quando
mirou o pedacinho de gente posicionado bem na boca de cena da História: “de que
planeta você veio, minha filha?”. Gargalhadas histéricas na plateia, só que por
breves segundos. Na aquarela de Ary, não havia destaque para a cor da resposta
visceral, raio cósmico, cortina do passado dilacerada ante a metamorfose de uma
divindade em flor: “eu vim do planeta fome”. Desvario. Apoteose. A primeira.
distante bairro de Padre Miguel, menos de 40 quilos de pura insistência em
sobreviver, desembarca no badalado programa de calouros de Ary Barroso.
Equilibrava bom punhado de alfinetes para conter os panos todos do conjunto que
sobrava e sambava no corpo. O sonho de ser a moça bonita do rádio determinava
as cantorias da pequena – lata d’água na cabeça – cuja infância havia sido
subtraída pelo suor de sol a sol dos afazeres domésticos. Já em posição
debutante no palco transmitido em ondas aos ouvintes, as lembranças de pueris
duetos com o som do louva-a-deus e as espiadelas no pai violeiro garantiam
relativa técnica. Mas a força para transcender o destino foi a autêntica locomotiva.
O autor de “Aquarela do Brasil” fez as honras sem nenhum pingo de honra quando
mirou o pedacinho de gente posicionado bem na boca de cena da História: “de que
planeta você veio, minha filha?”. Gargalhadas histéricas na plateia, só que por
breves segundos. Na aquarela de Ary, não havia destaque para a cor da resposta
visceral, raio cósmico, cortina do passado dilacerada ante a metamorfose de uma
divindade em flor: “eu vim do planeta fome”. Desvario. Apoteose. A primeira.
Com o pedestal voltado à
glória, soltou o talento até raspar o fundo do tacho d’alma para, ao fim,
desabar nos braços daquele gênio letrado bem menos sabedor desse chão do que a
sua humanidade supunha. Ora, o apresentador jamais imaginaria negra e pobre a
arte-final esquecida pelo maior clássico que compusera. Próxima ao gongo em
silêncio, e mergulhada na letra de “Lama”, estava, possivelmente, a imagem de
Deus. Deusa – corrijamos – de joelhos e em adoração. Mulher. Que irrompeu a
pergunta insensível, o direito que tinham para humilhá-la, as dificuldades do
berço, o preconceito castrador e invasor do íntimo feminino, o racismo. A
partir dali, nasceu uma estrela. Voz das vozes abafadas. Microfone de potente
rouquidão rascante para os ais dos humildes. Água santa a revalidar existências
e também as reminiscências ligadas à mãe lavadeira, ofício da roupa batida que
faz marcar o ritmo de um futuro quase sempre estéril.
glória, soltou o talento até raspar o fundo do tacho d’alma para, ao fim,
desabar nos braços daquele gênio letrado bem menos sabedor desse chão do que a
sua humanidade supunha. Ora, o apresentador jamais imaginaria negra e pobre a
arte-final esquecida pelo maior clássico que compusera. Próxima ao gongo em
silêncio, e mergulhada na letra de “Lama”, estava, possivelmente, a imagem de
Deus. Deusa – corrijamos – de joelhos e em adoração. Mulher. Que irrompeu a
pergunta insensível, o direito que tinham para humilhá-la, as dificuldades do
berço, o preconceito castrador e invasor do íntimo feminino, o racismo. A
partir dali, nasceu uma estrela. Voz das vozes abafadas. Microfone de potente
rouquidão rascante para os ais dos humildes. Água santa a revalidar existências
e também as reminiscências ligadas à mãe lavadeira, ofício da roupa batida que
faz marcar o ritmo de um futuro quase sempre estéril.
Curiosa a sina de se inserir e
a outras carnes pretas no mapa oligarca branco forjado na marra e na régua.
Numa só frase, desvelou o fogo de realidade que intelectuais com canudos
enrolados nas grandes universidades mal conseguiram reconhecer brasa. Sua
música se tornou trono matriarcal para denunciar as contradições da gigante
“mátria” pouco gentil. Obrigada a trocar alianças quando a companhia eram as
bonecas, deu à luz muito cedo, mas leite também aos que não pariu: holofote
sobre os brasis ancestralmente invisíveis. E foi, justamente, da ordem do
invisível, ou etéreo, certa passagem marcante e definidora – ainda nos tempos
da dureza primordial. Prestes a ser atacada por uma vaca que pastava no entorno
de casa, tratou de encarar o bicho bravo olho no olho. A coragem intuitiva
reconfigurou a quase tragédia: recebeu uma inacreditável lambida do queixo à
testa, passeio lingual com o aparente tamanho da eternidade.
a outras carnes pretas no mapa oligarca branco forjado na marra e na régua.
Numa só frase, desvelou o fogo de realidade que intelectuais com canudos
enrolados nas grandes universidades mal conseguiram reconhecer brasa. Sua
música se tornou trono matriarcal para denunciar as contradições da gigante
“mátria” pouco gentil. Obrigada a trocar alianças quando a companhia eram as
bonecas, deu à luz muito cedo, mas leite também aos que não pariu: holofote
sobre os brasis ancestralmente invisíveis. E foi, justamente, da ordem do
invisível, ou etéreo, certa passagem marcante e definidora – ainda nos tempos
da dureza primordial. Prestes a ser atacada por uma vaca que pastava no entorno
de casa, tratou de encarar o bicho bravo olho no olho. A coragem intuitiva
reconfigurou a quase tragédia: recebeu uma inacreditável lambida do queixo à
testa, passeio lingual com o aparente tamanho da eternidade.
Afogada na saliva e surpresa
por esta viva, entendeu o banho viscoso como a unção protetora que a conduziria
adiante. Seguiu. Limite? O céu, é claro. Pitoresco batismo em religião própria,
cuja tábua de mandamento único ostentava a interpretação pessoal dos segredos
de cima, lá onde mora o Guerreiro. Bruxa, mandingueira, sacerdotisa de poderes
e sentimentos indomados. Fada canção. Feiticeira a macerar folhas de inspiração
e fé no eu iluminado. Unguento, incenso, veneno. Movimento. O real e a quimera
em qualquer batuque – do terreiro ao bar, do culto ao cabaré, da intimidade do
chatô ao infinito da nação profunda. Suingue de credo, cruz ou cura.
por esta viva, entendeu o banho viscoso como a unção protetora que a conduziria
adiante. Seguiu. Limite? O céu, é claro. Pitoresco batismo em religião própria,
cuja tábua de mandamento único ostentava a interpretação pessoal dos segredos
de cima, lá onde mora o Guerreiro. Bruxa, mandingueira, sacerdotisa de poderes
e sentimentos indomados. Fada canção. Feiticeira a macerar folhas de inspiração
e fé no eu iluminado. Unguento, incenso, veneno. Movimento. O real e a quimera
em qualquer batuque – do terreiro ao bar, do culto ao cabaré, da intimidade do
chatô ao infinito da nação profunda. Suingue de credo, cruz ou cura.
E aí não tardou, monumento
vocal velozmente consagrado, para brilhar mundo afora e país adentro. Ergueu-se
samba sincopado de trejeito característico, o jazz agridoce banhado na pimenta
da terra que tudo dá, nosso divã social, espelho e síntese no mesmo metro e
meio de entidade. Bossa nossa. Sobre o palco de asfalto da folia, encontrou outra
estrela, de milhares em cortejo e também filha de Padre Miguel – a Mocidade –,
tão independente quanto ela. E mergulhou na bênção mística da percussão, que
alforria os corpos domesticados e faz do festival do couro a alegria de uma
cidade ao celebrar a dádiva do pertencimento. Mas foi a obsessão por cantar o
amor sem pudores a sua forma categórica de pertencer. Amor à arte, às escolhas,
à distância. Ao guri. Ao malandro. Ao Mané. Amou e foi amada. Sem medo e sem
vergonha. Sem limites. Ou quase: apesar da vocação para inspirar gentes no
embalo da natureza passional, pagou o preço ao escolher decolar no torrão que
censura as asas dos filhos. Tombou. Cadente estrela. Solitária.
vocal velozmente consagrado, para brilhar mundo afora e país adentro. Ergueu-se
samba sincopado de trejeito característico, o jazz agridoce banhado na pimenta
da terra que tudo dá, nosso divã social, espelho e síntese no mesmo metro e
meio de entidade. Bossa nossa. Sobre o palco de asfalto da folia, encontrou outra
estrela, de milhares em cortejo e também filha de Padre Miguel – a Mocidade –,
tão independente quanto ela. E mergulhou na bênção mística da percussão, que
alforria os corpos domesticados e faz do festival do couro a alegria de uma
cidade ao celebrar a dádiva do pertencimento. Mas foi a obsessão por cantar o
amor sem pudores a sua forma categórica de pertencer. Amor à arte, às escolhas,
à distância. Ao guri. Ao malandro. Ao Mané. Amou e foi amada. Sem medo e sem
vergonha. Sem limites. Ou quase: apesar da vocação para inspirar gentes no
embalo da natureza passional, pagou o preço ao escolher decolar no torrão que
censura as asas dos filhos. Tombou. Cadente estrela. Solitária.
Bailarina equilibrista que
sempre teceu a vida a partir do fio da liberdade, experimentou o da navalha
quando os malabares com os quais distribuiu encanto viraram pedras contra si. A
redentora passou a algoz no picadeiro moral dos supostos bons costumes. Sentiu
o tapa, a ferida, o esquecimento. E pedaços arrancados. De novo. Porém, o
trapézio que lança ao Olimpo, e vê desabar se as mãos deslizam no voo em cego
dos mistérios de existir, tem no final do abismo uma rede de proteção
fraternal. Dura na queda, conseguiu ser devolvida do fosso da orquestra. Mais
forte. Tal qual a língua – aqui, a humana – que roça a nuca e reacende o
arrepio. Diva sensorial a nos ensinar sobre a delícia de cultuar a própria
carne mal taxada e o espírito, na cruzada em desafio aos intolerantes. Pele e
osso que sentem lava escorrer e exclamam política transgressora, para inferno e
desnudar dos caretas. Cóccix, peito, nervos, coração, pescoço. Garganta.
sempre teceu a vida a partir do fio da liberdade, experimentou o da navalha
quando os malabares com os quais distribuiu encanto viraram pedras contra si. A
redentora passou a algoz no picadeiro moral dos supostos bons costumes. Sentiu
o tapa, a ferida, o esquecimento. E pedaços arrancados. De novo. Porém, o
trapézio que lança ao Olimpo, e vê desabar se as mãos deslizam no voo em cego
dos mistérios de existir, tem no final do abismo uma rede de proteção
fraternal. Dura na queda, conseguiu ser devolvida do fosso da orquestra. Mais
forte. Tal qual a língua – aqui, a humana – que roça a nuca e reacende o
arrepio. Diva sensorial a nos ensinar sobre a delícia de cultuar a própria
carne mal taxada e o espírito, na cruzada em desafio aos intolerantes. Pele e
osso que sentem lava escorrer e exclamam política transgressora, para inferno e
desnudar dos caretas. Cóccix, peito, nervos, coração, pescoço. Garganta.
Ela, então, coloca desordem na
preconceituosa ordem vigente, dando ré no apocalipse com o dito planeta fome
completamente desgovernado. Pula o muro, alastra-se no proibido e perfuma a
missão – herdada desde o show seminal – de fazer multidão frenética os
carimbados como minoria. Eis a incendiária porta-estandarte de quem inclui,
desafia, abraça, respeita, desatina, desata, transforma e se transforma. Do
protagonismo feminino radicalmente contrário à mão levantada para a mulher. Dos
amantes que, na embriaguez libertária, gozam sensualmente o afeto sem mordaça e
constelam aflição pelo beijo ardente. O ato de transmutação do fazer artístico
em grito dos incontroláveis por todos os milênios.
preconceituosa ordem vigente, dando ré no apocalipse com o dito planeta fome
completamente desgovernado. Pula o muro, alastra-se no proibido e perfuma a
missão – herdada desde o show seminal – de fazer multidão frenética os
carimbados como minoria. Eis a incendiária porta-estandarte de quem inclui,
desafia, abraça, respeita, desatina, desata, transforma e se transforma. Do
protagonismo feminino radicalmente contrário à mão levantada para a mulher. Dos
amantes que, na embriaguez libertária, gozam sensualmente o afeto sem mordaça e
constelam aflição pelo beijo ardente. O ato de transmutação do fazer artístico
em grito dos incontroláveis por todos os milênios.
No altar do samba brasileiro,
a Mocidade encontra o elo fundamental perdido e celebra a apoteose de uma
estrela da canção ao reinventar o agora. O seu nome é agora – menina, senhora,
doutora do tempo. A mensagem que deixamos para o próximo carnaval pinta o Black
e tem o Power, traz a revolução de um abalo sísmico, a urgência explosiva de um
novo Big Bang, põe Exu nas rodas, nas escolas, na prosa, é rua, nua e crua:
a Mocidade encontra o elo fundamental perdido e celebra a apoteose de uma
estrela da canção ao reinventar o agora. O seu nome é agora – menina, senhora,
doutora do tempo. A mensagem que deixamos para o próximo carnaval pinta o Black
e tem o Power, traz a revolução de um abalo sísmico, a urgência explosiva de um
novo Big Bang, põe Exu nas rodas, nas escolas, na prosa, é rua, nua e crua:
Deus é mesmo mulher. Deus é
negra.
negra.
Ouçam a sua palavra que nos
invade.
invade.
Salve a Mulher do Fim do
Mundo.
Mundo.
Salve Elza Deusa Soares.
Carnavalesco: Jack Vasconcelos
Sinopse: Fábio Fabato
Pesquisa e Colaboração: André
Luís Junior
Luís Junior
Referências (além da
discografia de nossa Elza Deusa Soares):
discografia de nossa Elza Deusa Soares):
CAMARGO, Zeca. Elza. Rio de
Janeiro: Leya Casa da Palavra, 2018
Janeiro: Leya Casa da Palavra, 2018
CASTRO, Rui. Estrela solitária
– um brasileiro chamado Garrincha. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 1995.
– um brasileiro chamado Garrincha. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 1995.
DINIZ, Alan; FABATO, Fábio;
MEDEIROS, Alexandre. As três irmãs: como um trio de penetras “arrombou a
festa”. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2012, Família do Carnaval.
MEDEIROS, Alexandre. As três irmãs: como um trio de penetras “arrombou a
festa”. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2012, Família do Carnaval.
LOUZEIRO, José. Elza Soares:
Cantando para não enlouquecer. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2010.
Cantando para não enlouquecer. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2010.
PEREIRA, Bárbara. Estrela que
me faz sonhar. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2013, Cadernos de Samba.
me faz sonhar. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2013, Cadernos de Samba.
SUARES, Gerson. De pernas para
o ar: minhas memórias com Garrincha. Rio de Janeiro: Oficina Raquel.
o ar: minhas memórias com Garrincha. Rio de Janeiro: Oficina Raquel.
No responses yet